segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

EU...

Decassílabo perfeito ou não,
Em rima ou em prosa,
Sendo sujeito, verbo ou predicado
Eu sobrevivo
Não rimo, não separo estrofes
Mais por incompetência que por rebeldia
Mas também não conjugo o pretérito do subjuntivo
"ahh, se eu fosse...",
"ahh, se eu fizesse"
(Tempo verbal depressivo, o mundo seria melhor sem ele)
Imperativos, com "Por favor"
Superlativos, com moderação
Metáforas, em baldes
Metonímias, só na gillete e no danone
Propagandas, só nas metonímias
Sarcasmo, em tudo
Enfim... "Penso, logo existo."
Mas existir não é tudo.
Aliás, existir por si só não é nada.
Portanto, busco ainda rascunhar
todos os argumentos reais que eu puder
nesse esboço que chamamos de vida.
E tenho dito.

SABER VIVER

A cada dia que vivo,
mais me convenço de que o desperdício da vida
está no amor que não damos,
nas forças que não usamos,
na prudência egoísta que nada arrisca e que,
esquivando-se do sofrimento
perdemos também a felicidade.
A felicidade não está em viver,
mas em saber viver.

Carlos Drummond de Andrade

QUANDO ACABAR ESTA MINHA ADOLESCÊNCIA

Quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta minha adolescência...
Vou largar da vida louca e terminar minha livre docência...
Vou fazer o que meu pai quer,
começar a vida com passo perfeito...
Vou fazer o que minha mãe deseja,
aproveitar as oportunidades de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito...
Então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência!!!

Paulo Leminski

MEU JARDIM

Tô relendo minha lida, minha alma, meus amores.
Tô revendo minha vida, minha luta, meus valores.
Refazendo minhas forças, minhas fontes, meus favores.
Tô regando minhas folhas, minhas faces, minhas flores...

Tô limpando minha casa, minha cama, meu quartinho.
Tô soprando minha brasa, minha brisa, meu anjinho.
Tô bebendo minhas culpas, meu veneno, meu vinho.
Escrevendo minhas cartas, meu começo, meu caminho.

Estou podando meu jardim...
Estou cuidando bem de mim...

Vander Lee

BAUDELAIRE

É preciso estar sempre embriagado.
Isso é tudo: é a única questão.
Para não sentir o horrível fardo do Tempo
que lhe quebra os ombros e o curva para o chão,
é preciso embriagar-se sem perdão.
Mas de que?
De vinho, de poesia ou de virtude, como quiser.
Mas embriague-se.
E se às vezes, nos degraus de um palácio,
na grama verde de um fosso,
na solidão triste do seu quarto,
você acorda,
a embriaguez já diminuída ou desaparecida,
pergunte ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio,
a tudo o que foge, a tudo o que geme,a tudo o que rola,
a tudo o que canta, a tudo o que fala,
pergunte que horas são
e o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o relógio lhe responderão:
"É hora de embriagar-se!
Para não ser o escravo mártir do Tempo,
embriague-se; embriague-se sem parar!
De vinho, de poesia ou de virtude, como quiser."

Baudelaire

TRADUZIR-SE

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?

Ferreira Gullar
In Na Vertigem do Dia (1975-1980)